O trágico da vida no contexto das novas políticas de inclusão social

Uma reflexão despretensiosa acerta da temática das diferenças…


As políticas de inclusão, particularmente aquelas voltadas para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outras condições neurodivergentes, têm se destacado no cenário contemporâneo como esforços importantes para uma sociedade mais acolhedora. O objetivo dessas políticas é criar um ambiente em que as diferenças individuais sejam não apenas aceitas, mas celebradas e respeitadas. No entanto, ao adotar uma perspectiva nietzschiana, essas políticas suscitam questões complexas sobre a natureza da inclusão e o impacto que ela pode ter no desenvolvimento humano. Para Friedrich Nietzsche, a força humana advém não da evitação do sofrimento, mas do seu encontro ativo. Sua visão de tragédia grega e sua crítica ao ressentimento trazem à tona a necessidade de questionar o papel da inclusão como uma forma de enfrentamento do trágico, e não como um mecanismo de proteção absoluta.

Tragédia como Modelo de Enfrentamento da Existência

Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche discute a tragédia grega como uma representação estética da vida em toda sua profundidade e contradição. Na tragédia, forças opostas, simbolizadas pelo apolíneo e pelo dionisíaco, se fundem para criar uma visão plena da existência. O apolíneo, ligado a Apolo, representa a ordem, a beleza e a harmonia, enquanto o dionisíaco, associado a Dioniso, simboliza o caos, o êxtase e a irracionalidade. Para Nietzsche, os gregos antigos encaravam a vida através desse equilíbrio: a tragédia permitia que o público vivenciasse o sofrimento e a desordem como elementos inevitáveis da existência, de modo que o enfrentamento do “caos” fazia parte da própria afirmação da vida.

Esse encontro com o trágico, para Nietzsche, é uma forma de redenção estética e uma demonstração de vitalidade. O filósofo acreditava que a cultura ocidental moderna, ao enfatizar o racionalismo e a segurança, busca constantemente evitar o sofrimento e o caos da vida, mas com isso perde a profundidade da experiência humana. Para ele, o verdadeiro crescimento surge quando se aceita o sofrimento como um componente inevitável da existência, em vez de tentar removê-lo. Nietzsche via nessa aceitação trágica uma fonte de força, em que o ser humano é fortalecido ao se reconciliar com o absurdo e o transitório.

Inclusão e o Risco da Proteção Excessiva

Se aplicarmos essa visão trágica às políticas inclusivas, surge a questão de até que ponto a inclusão, ao buscar proteger e adaptar a sociedade para as necessidades dos indivíduos, pode inadvertidamente cair no que Nietzsche chamaria de uma “proteção excessiva”. Muitas vezes, essas políticas têm a tendência de isolar as pessoas com TEA, por exemplo, de qualquer situação que possa lhes causar frustração ou desconforto, criando ambientes cuidadosamente controlados. Embora bem-intencionadas, tais abordagens, para Nietzsche, poderiam ter o efeito contrário, privando os indivíduos da experiência enriquecedora de enfrentar e superar desafios.

A famosa frase de Nietzsche, “o que não me mata me fortalece”, reflete essa ideia: acreditava que o fortalecimento surge da superação de adversidades, e não da fuga delas. Uma inclusão verdadeiramente significativa, sob uma ótica nietzschiana, não deve buscar eliminar as dificuldades, mas sim permitir que os indivíduos as enfrentem dentro de suas capacidades, criando um ambiente em que possam crescer e desenvolver resiliência. Essa inclusão trágica, ao estilo controverso do autor, respeita a individualidade e promove um enfrentamento saudável do sofrimento e da dificuldade, reconhecendo que esses elementos, quando confrontados, contribuem para uma vida mais autêntica e profunda.

A Crítica ao Ressentimento

Outro conceito fundamental na filosofia de Nietzsche é o ressentimento, um sentimento de frustração e inveja que surge quando o indivíduo, incapaz de confrontar suas próprias limitações, projeta suas dificuldades e fracassos no mundo exterior. Para Nietzsche, uma sociedade que promove um senso de proteção excessiva pode acabar gerando o ressentimento ao encorajar as pessoas a verem as adversidades como injustiças ou limitações impostas. No contexto das políticas inclusivas, isso poderia ocorrer se os indivíduos (nosso exemplo) considerados neurodivergentes fossem incentivados a ver suas dificuldades apenas como obstáculos externos a serem removidos pela sociedade, em vez de desafios a serem enfrentados e superados em suas próprias capacidades.

Nietzsche argumentaria que essa atitude de ressentimento enfraquece tanto o indivíduo quanto a sociedade como um todo, criando uma cultura que espera compensação e proteção, em vez de enfrentar as dificuldades diretamente em toda a sua crueldade. A verdadeira inclusão, para ele, deve estar livre desse ressentimento, sendo baseada no fortalecimento do indivíduo para que seja capaz de se afirmar no mundo, enfrentando as dificuldades como oportunidades de crescimento. Esse enfrentamento, longe de ser uma negação das necessidades de suporte, seria a base de uma inclusão que encoraje o desenvolvimento pessoal e a autossuficiência, em vez de alimentar uma visão vitimista e ressentida.

A Inclusão Trágica: Respeito à Singularidade e Fortalecimento do Indivíduo

Nietzsche provavelmente veria com bons olhos uma política inclusiva que, em vez de tratar as diferenças como “fragilidades”, reconhece a capacidade de cada indivíduo de crescer e de se fortalecer por meio da confrontação de dificuldades. É bem provável que defendesse uma “inclusão trágica”, em que as políticas não culminem na criação de experiências de vida completamente suaves e livres de obstáculos, mas sim possibilitar que todos se desenvolvam, respeitando suas particularidades e incentivando o enfrentamento do sofrimento como parte da experiência humana.

Essa inclusão trágica rejeita a proteção excessiva e abraça a diversidade de modos de existir como fonte de fortalecimento. Trata-se de uma visão que entende a vida como um processo de afirmação contínua, em que o sofrimento e o caos fazem parte do desenvolvimento humano. Em vez de reduzir a experiência dos indivíduos a uma tentativa de segurança absoluta, a inclusão trágica valoriza a possibilidade de superação, dando às pessoas a oportunidade de confrontar desafios com o apoio necessário, mas sem os tratar como frágeis ou incapazes.

“Do sentimento trágico” da Inclusão

A visão nietzschiana da tragédia nos oferece uma crítica à cultura de proteção excessiva e nos lembra que o sofrimento e o enfrentamento de adversidades são fundamentais para o desenvolvimento humano e vida plena. A verdadeira inclusão, em sua visão, não é aquela que busca remover todos os obstáculos, mas aquela que permite que os indivíduos, dentro de suas particularidades, possam se fortalecer ao confrontá-los.

Nietzsche nos alerta sobre o risco do ressentimento, sugerindo que uma inclusão excessivamente protetiva pode encorajar uma visão vitimista em vez de promover a autossuficiência. A aceitação do trágico, com suas contradições e dores, é a base de uma vida autêntica e vibrante, e uma política inclusiva baseada nessa filosofia estaria menos preocupada em suavizar a realidade e mais em fortalecer o indivíduo para que ele possa viver plenamente.

Dessa forma, Nietzsche nos inspira a pensar a inclusão como uma aceitação da vida plena: uma abordagem que não foge do sofrimento, mas permite que seja um elemento de crescimento e afirmação. A inclusão trágica, longe de tratar as diferenças como limitações, as vê como parte da riqueza da experiência humana. Isso nos convida a repensar o que significa uma verdadeira inclusão: não uma proteção contra o sofrimento, mas uma abertura para que todos possam enfrentá-lo e encontrar, nesse enfrentamento, uma fonte de força, autenticidade e vitalidade.

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