Ascese, Agonismo e a Luta pela Superação em Nietzsche

Agonismo, Ascese e a Maestria na Arte de Trapacear


Tal qual o artigo anterior, permaneceremos aqui ainda sob as pistas das ideias de Nietzsche a fim de utilizá-las como ferramentas para a construção (será mesmo possível?) de um panorama relativo a uma “psicologia” no/do encontro entre pessoas, não obstante a total ausência de clareza ou discernimento sobre os “melhores” caminhos para a construção dessa trajetória. Não é por pouco ou por menos que destaca-se aqui o contraste de uma dupla visão simultânea, algo estratégico ao projeto filosófico nietzscheano: a visão que vê a longa distância e é ampla, reflexiva, enquanto a outra é limitada, focada no imediato e prático. Em “Para Além de Bem e Mal” (1886), seção 193, encontraremos literalmente:

Quem, como eu, com olhos de longe – olhos de um pensador nato e fatal – olha de perto e a grandes distâncias, não verá as coisas, sejam grandes ou pequenas, como o faz o olhar estreito, mesquinho e utilitário.

A metáfora do olhar destaca como diferentes perspectivas afetam a maneira de compreender o mundo e a vida em uma complexidade dinâmica cujo sentido também ocorre ao revés dos focos. Independentemente, a vida sempre se expande por suas próprias forças combativas. Vem daí outras noções interessantes aos nossos objetivos: agonismo e a ascese no âmbito da maestria da arte de trapacear.

As ideias de agonismo, ascese e a maestria na arte de trapacear em Nietzsche estão interligadas de maneira fascinante, revelando um quadro complexo sobre a natureza humana e o confronto com a realidade. Ao examinar essas três noções em conjunto, podemos ver como Nietzsche aborda a luta pela superação e a trapaça como formas de engajamento com a vida, além de suas críticas aos mecanismos humanos de negação e autoengano; ou a mentira que se conta reiteradamente a si mesmo!

1. A Maestria na Arte de Trapacear e a Condição Humana

A “maestria na arte de trapacear” descreve a habilidade humana de se (auto) enganar e enganar os outros nos jogos da vida. Nietzsche argumenta que as pessoas frequentemente criam narrativas e valores morais para esconder suas reais motivações, como o desejo de poder ou a busca por controle. Esse processo de trapaça pode ser visto como uma forma de autoengano, a partir do qual os indivíduos constroem justificativas para suas ações que mascaram a verdadeira essência de seus impulsos e fraquezas.

Porém, Nietzsche não condena isso como simplesmente moralmente errado. Pelo contrário, vê esse jogo de máscaras e trapaças como algo inerente à luta da vida. A competição entre indivíduos e grupos muitas vezes exige o uso de estratégias de engano e manipulação, tornando a “trapaça” uma ferramenta evolutiva e cultural na busca por poder, sobrevivência e autoafirmação. Nesse sentido, a trapaça pode ser uma forma de dominar e lidar com as tensões agonísticas da vida.

2. Agonismo: A Luta como Princípio Criativo

O conceito de agonismo em Nietzsche celebra a luta e o conflito como elementos vitais para o desenvolvimento humano. A vida é caracterizada por um constante confronto entre forças, seja entre indivíduos, culturas ou até consigo mesmo. Essa luta é vista como criativa, pois impulsiona o crescimento e a autossuperação; logo necessário.

Na luta agonística, a “trapaça” pode ser interpretada como um dos meios pelos quais o ser humano joga esse jogo existencial. Em um mundo onde a competição é inevitável, o engano é uma arma estratégica. Assim, a maestria na arte de trapacear é uma expressão de inteligência e habilidade dentro desse campo de batalha, onde sobreviver e prosperar exigem mais do que força bruta — exigem astúcia, autocontrole e manipulação das aparências.

3. Ascese: Trapaça ou Superação?

A ascese é um conceito que Nietzsche critica e admira simultaneamente, dependendo de como é praticada. Ele rejeita a ascese tradicional, especialmente a cristã, que vê como uma forma de trapaça moral — uma rejeição dos instintos e da vida em favor de um ideal transcendente que nega a vitalidade e a criatividade. Essa forma de ascetismo é, para Nietzsche, uma forma de trapaça na qual o indivíduo tenta escapar da luta agonística da vida ao se refugiar em uma moralidade que justifica a fraqueza e a resignação.

No entanto, Nietzsche valoriza uma outra forma de ascetismo: a ascese criativa ou agonística, que se engaja com a luta interna como um meio de fortalecer a vontade. Essa ascese é uma forma de trapaça não porque nega a vida, mas porque domina e manipula os próprios instintos para canalizá-los em direção à autossuperação. Nesse caso, a trapaça é uma forma de disciplinar o próprio corpo e a própria mente, permitindo que o indivíduo vença seus próprios impulsos inferiores e se torne mais forte, mais criativo e mais poderoso.

4. A Trapaça como Forma de Superação

Ao conectar essas três ideias, podemos ver que Nietzsche oferece uma visão dinâmica da trapaça e da ascese. A maestria na arte de trapacear, seja com os outros ou consigo mesmo, pode ser uma forma de autossuperação, desde que esteja ligada à vontade de potência e à criação de novas formas de existência. A trapaça, nesse contexto, não é meramente um ato de desonestidade, mas uma estratégia no jogo agonístico da vida — um meio de enfrentar as tensões do mundo e, em última análise, afirmar a vida.

O agonismo, por sua vez, é o palco onde essa trapaça se desenrola. No campo de batalha existencial, os indivíduos devem se engajar com a realidade de maneira criativa e estratégica. O autoengano ou a manipulação das aparências podem ser ferramentas legítimas dentro dessa luta, desde que não sirvam para negar a vida, mas para potencializar a capacidade de enfrentá-la.

Finalmente, a ascese agonística é o ponto em que a trapaça se torna uma forma de disciplina e autodomínio. Ao manipular os próprios instintos, o asceta agonístico transforma o autoengano em uma força de criação, utilizando a autodisciplina para atingir novos patamares de existência. Essa ascese não nega a vida, mas a molda, e, nesse sentido, a trapaça é transformada em um meio legítimo de autossuperação.

Conclusão: Trapaça, Luta e Vida

O que une essas ideias de maestria na trapaça, agonismo e ascese é a visão de Nietzsche de que a vida é conflito e superação. A trapaça, quando vista de maneira criativa, pode ser uma expressão dessa luta, uma ferramenta usada tanto para dominar os outros quanto para dominar a si mesmo. O agonismo fornece o contexto dessa batalha, e a ascese — quando vista positivamente — é a forma como esse conflito interno é estruturado e canalizado.

Em última análise, Nietzsche nos desafia a afirmar a vida em toda a sua complexidade, em dores e delícias, de modo a reconhecer que a trapaça faz parte do jogo da existência, como utilizar esse jogo de maneira criativa para nos superarmos. Assim, a maestria na arte de trapacear, quando ligada ao agonismo e à ascese criativa, deixa de ser um simples engano moral e se torna um meio de afirmação vital.

Entre 9 e 26 de agosto de 1882, em Tautenburg (Alemanha), Lou Salomé, por ocasião de sua despedida à estadia na cidade, entregue a Nietzsche um poema em que celebra a plenitude da vida:

ORAÇÃO À VIDA

Tão seguro do amor de um amigo por um amigo
Como te amo, vida enigma –
Ainda que te exalte ou chore,
Se bem que me ofereças felicidade ou sofrimento.

Eu te amo mesmo com os teus pesares;
E caso queira-me destruir,
Arrebatar-me-ei em teus braços,
Como o amigo se desprende de um peito amigo.

Com toda força eu a envolvo!
Deixe tuas chamas inflamar-me,
Deixe-me ainda no ardor da luta
Descobrir apenas o teu profundo enigma.

Milênios para ser! Para pensar!
Encerre-me em ambos os teus braços:
Nenhuma felicidade a me dar –
Bem – dai-me o teu sofrimento.

Impactado, Nietzsche compõe um tema ao piano e o envia ao músico e amigo Peter Gast: “Eu gostaria de ter composto um lied que pudesse ser tocado em público – ‘para reunir os homens à minha filosofia’. Veja se esta Oração à Vida se presta para tanto”. Há pouco de sua morte, em Ecce Homo, irá registrar: este “poema é assombrosa inspiração de uma jovem russa com quem então mantinha amizade, a srta. Lou Von Salomé. Quem souber extrair sentido das últimas palavras do poema perceberá porque eu o distingui e admirei: elas têm grandeza. A dor não é vista como objeção à vida”. Peter Gast irá compor o tema para coro e orquestra como se pode assistir abaixo.

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