A “Grande Saúde” a partir das Redes de Apoio: os desafios da transvaloração do sofrimento

Este breve ensaio propõe uma “provocação positiva” ao considerar as contribuições de Friedrich Nietzsche como inspiração para uma abordagem programática e pragmática em direção à construção de Redes de Apoio dedicadas a fortalecimento da “Grande Saúde” em pacientes com intenso sofrimento mental. Em vez de seguir à risca o modelo filosófico nietzscheano, o texto utiliza alguns conceitos centrais do filósofo — “vontade de potência”, “eterno retorno” e “amor fati” — como uma “caixa de ferramentas”, proporcionando um novo entendimento sobre saúde mental que valorize a vitalidade, a aceitação do sofrimento e a ressignificação das dificuldades. Por meio da transvaloração dos valores convencionais de cura, propõe-se aqui, a título de reflexão, crítica, perspectiva e experimentação, considerar que o objetivo das redes de apoio não é suprimir a dor, mas sim auxiliar o indivíduo a transformar o sofrimento em um caminho de autossuperação, resiliência e autocompreensão. Não se trata de tomar o filósofo com um “guru” para a autoajuda, muito menos em afirmar que a tarefa em si mesmo é simples ou fácil. A questão está em aceitar que essa é a vida que temos e é com ela, por ela e a partir dela que temos e que precisamos viver.

Friedrich Nietzsche, com sua provocativa pergunta “qual o valor dos valores?”, desafia uma reflexão profunda sobre os princípios que orientam nossas vidas. Ao propor a “transvaloração de todos os valores”, Nietzsche questiona as bases de conceitos como “bem” e “mal”, buscando um novo entendimento sobre o que significa viver plenamente. Neste artigo, exploramos como a filosofia de Nietzsche pode inspirar a construção de redes de apoio para pessoas em intenso sofrimento mental, reavaliando os valores que orientam as práticas de saúde mental e promovendo uma abordagem que reconheça a complexidade da vida humana.

1. Qual o Valor dos Valores no Cuidado ao Sofrimento Mental?

Quando Nietzsche propõe questionar o valor dos valores, ele incentiva a desconstrução das noções estabelecidas que regulam nossos comportamentos e entendimentos. No contexto do cuidado ao sofrimento mental, essa abordagem convida à reflexão crítica sobre os valores que dominam os tratamentos convencionais — como a busca pela estabilidade emocional, a felicidade como um fim em si e a visão da saúde mental como ausência de sofrimento.

Sob uma perspectiva nietzschiana, esses valores podem ser limitantes, pois simplificam o que é, na verdade, uma experiência humana complexa e multifacetada. Perguntar “qual o valor dos valores?” em relação ao sofrimento mental significa questionar se a cura e a ausência de dor são, de fato, as únicas formas válidas de saúde. Em vez disso, Nietzsche nos leva a considerar uma “grande saúde” — uma forma de viver que incorpora e transcende o sofrimento, permitindo ao indivíduo encontrar um sentido e uma vitalidade que não estão dependentes de uma idealizada vida sem dificuldade, e que, portanto, é inexistente.

2. A Grande Saúde: Transcendendo os Valores Convencionais de Cura

Nietzsche introduz o conceito de “grande saúde” como uma condição que vai além da saúde convencional, associada à ausência de sintomas ou à estabilidade emocional, entendida esta como ausência das modulações que compõem a vida emocional de qualquer pessoa. A “grande saúde” é uma vitalidade que abraça a transformação, a luta, a superação e o movimento; da plenitude do ápice, olhar pra baixo e perceber o secreto impulso da decadência da vida, assim como de baixo, a partir do (intenso) sofrimento, olhar para os conceitos e valores mais sadios para perceber que a vida se faz plenamente. Enfim, um longo exercício: “transtrocar perspectivas”! Em uma rede de apoio inspirada nessa visão, o objetivo não seria “curar” o sofrimento mental no sentido tradicional, mas ajudar o paciente a ver o sofrimento como um elemento possível de crescimento, uma parte inevitável e significativa de sua trajetória. E, se a vida é composta por sofrimento, não é, por outro lado, apenas composta por sofrimento, uma vez que os prazeres e as satisfações igualmente compõem a totalidade da existência, a vida em sua plenitude. Deste modo, sofrimento e satisfação, tomada como valor mais sadio, não podem ser entendidos com um par de opostos, mas sim mais propriamente como prismas de onde observamos a nossa vida e condição. Tomá-los como totalidade em movimento nos mobiliza igualmente a uma atitude de ação (movimento) perante à vida em busca da autossuperação.

O valor desse entendimento de saúde está em ajudar o indivíduo a encontrar força e significados profundos em suas lutas. Na prática, isso significa redesenhar as intervenções para que a experiência do paciente seja vista como algo mais do que um estado patológico a ser eliminado, mas como uma dimensão da vida a ser integrada e compreendida. O sofrimento faz parte necessariamente da vida que precisa ser vivida.

3. Vontade de Potência: Redefinindo o Valor da Autonomia e da Resiliência

A vontade de potência é a força fundamental que, segundo Nietzsche, impulsiona todos os seres a buscar mais do que simplesmente sobreviver — a criar, se expandir e afirmar a própria existência. Na transvaloração dos valores, a vontade de potência desafia as noções convencionais de resiliência e autonomia, propondo uma visão em que a força individual não se manifesta na conformidade com normas ou padrões, mas na criação de novos valores.

Para pacientes em sofrimento mental, a aplicação desse conceito implica no fortalecimento da autonomia e no incentivo para que cada um busque, à sua maneira, o sentido e o valor da própria vida, transformando a dor e as dificuldades em experiências que contribuam para seu próprio desenvolvimento. Redes de apoio que incorporam esse valor podem ajudar o paciente a ver sua vida como uma criação contínua, em que o sofrimento se torna não um obstáculo, mas uma fonte potencial de significados e de potência pessoal.

4. Eterno Retorno: Aceitação e Repetição como Parte do Processo de Cura

O conceito do “eterno retorno” — a ideia de que a vida e seus momentos se repetem infinitamente — é uma proposta para que cada indivíduo valorize todos os aspectos de sua existência, incluindo o sofrimento. Através da lente do eterno retorno, o sofrimento deixa de ser visto como um evento a ser superado ou esquecido e passa a ser reconhecido como uma parte essencial da vida.

Nas redes de apoio, esse conceito poderia ser traduzido em práticas que ajudem o paciente a aceitar a natureza cíclica de suas experiências emocionais. Em vez de ver a recorrência de períodos de crise como fracasso, os pacientes são encorajados a considerar esses ciclos como momentos para fortalecer a autocompreensão e a aceitação. Essa abordagem permite que a saúde mental seja vista como uma jornada contínua, em vez de um destino final, aceitando que a vida plena inclui altos e baixos, e que ambos podem ter valor.

5. Amor Fati: Amando o Destino e Ressignificando o Sofrimento

O “amor fati” — o amor ao destino — é uma expressão de aceitação radical, em que o indivíduo não apenas tolera, mas ama sua própria vida em todos os aspectos, incluindo as dores e perdas. Ao propor a transvaloração dos valores, Nietzsche nos convida a substituir o ideal de felicidade por uma aceitação integral da vida, onde o valor da existência é encontrado na capacidade de aceitar, sem ressentimento, tudo o que acontece e a agir no mundo.

Para uma rede de apoio a pacientes em sofrimento mental, o amor fati implica em convidar os pacientes a ressignificar o sofrimento. Em vez de ver a dor como um erro ou um desvio de uma vida ideal, o paciente é incentivado a encontrar valor na sua trajetória, incluindo os momentos difíceis. Essa abordagem pode incluir práticas de reflexão sobre os significados que o paciente atribui às suas experiências, com o objetivo de promover uma relação menos conflituosa com o passado e um entendimento mais compassivo de si.

6. Métodos Histórico e Genealógico: Investigando o Valor dos Valores

Nietzsche sugere que nossos valores têm histórias complexas, ligadas a contextos e interesses específicos. A genealogia, para Nietzsche, é uma ferramenta para rastrear o valor dos valores, revelando suas influências e permitindo que possamos reinterpretá-los. No contexto das redes de apoio, aplicar a genealogia significa investigar junto ao paciente a origem de suas crenças e entendimentos sobre o sofrimento, saúde e felicidade.

Ao questionar “qual o valor dos valores?”, as redes de apoio podem ajudar os pacientes a desenvolver uma nova compreensão de suas dificuldades, incentivando uma visão menos prescritiva e mais criativa sobre o próprio sofrimento. Essa metodologia permite uma reavaliação das interpretações que o paciente incorporou ao longo de sua vida, encorajando-o a redescobrir o que realmente considera valioso e significativo.

7. Aplicações Práticas: Estruturando uma Rede de Apoio

Com base nesses conceitos, uma rede de apoio poderia incluir as seguintes práticas:

  • Diálogos Genealógicos: sessões que explorem com o paciente e seus familiares as origens das ideias e expectativas sobre saúde e sofrimento, ajudando-o a questionar e reinterpretar os valores que orientam sua vida.
  • Reflexão sobre o Eterno Retorno: discussões que permitam aos envolvidos ver a repetição de suas dificuldades como parte natural do ciclo de vida, promovendo a aceitação da recorrência e fortalecendo a resiliência.
  • Atividades de Amor Fati: exercícios de autorreflexão e práticas expressivas que incentivem o paciente a valorizar todas as suas experiências, promovendo um relacionamento mais compassivo e integrador com a própria vida.
  • Cultivo da Vontade de Potência: estratégias que ajudem o paciente a explorar e expandir suas próprias forças, reconhecendo suas conquistas pessoais e habilidades, mesmo que ainda em desenvolvimento.

Transvalorar os valores será eliminar o “solo” a partir do qual os valores foram engendrados e, procedendo uma inversão, criar novos valores. Tal proposta nos oferece uma visão mais abrangente e compassiva em circunstância de intenso sofrimento mental. Redes de Apoio inspiradas nesses princípios não buscam a simples erradicação da dor, mas promovem um entendimento mais rico da existência, em que sofrimento e crescimento coexistem e se reforçam mutuamente. O valor da saúde mental reside em uma vida vivida em intensidade. Pacientes e familiares, inseridos em uma rede de apoio compassiva, podem ser mais capazes de (re)inventar continuamente os significados e os valores que orientam sua trajetória. Nesse sentido, considera-se que uma abordagem assim configurada abre espaço para que cada indivíduo possa encontrar, em meio à dor, a oportunidade de crescimento e transformação. E consiga valorizar devidamente também os momentos prazerosos e alegres que vive, algo que muitas vezes é secundarizado tendo em vista o sofrimento.

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