A compreensão do comportamento humano, tanto em seus aspectos conscientes quanto inconscientes, tem sido um dos grandes desafios da filosofia e da psicologia. Dois conceitos que emergem de tradições diferentes, mas que dialogam de maneira profunda, são o Conatus de Baruch Spinoza e o Inconsciente de Sigmund Freud. Enquanto o Conatus descreve o impulso fundamental de cada ser em preservar sua existência, o inconsciente freudiano revela as camadas ocultas da mente humana, onde desejos reprimidos e pulsões guiam o comportamento de maneira não consciente. Neste artigo, exploraremos essas duas noções e as relações entre elas, com especial atenção ao conceito de liberdade, central tanto na filosofia de Spinoza quanto na psicanálise freudiana.
Conatus: O Impulso de Autoconservação e o Livre-Arbítrio como Ficção
No pensamento de Spinoza, o Conatus é o princípio básico que rege todos os seres: o esforço para preservar a sua existência. Cada ser, segundo Spinoza, age sempre de modo a manter sua integridade e promover seu bem-estar. Isso se aplica tanto aos corpos físicos quanto às mentes. Para Spinoza, essa busca incessante por autopreservação é uma característica inata e necessária de cada ser, uma expressão da própria natureza da realidade.
Nesse sentido, Spinoza rejeita a ideia tradicional de livre-arbítrio. Segundo ele, as ações humanas não são verdadeiramente livres no sentido de uma escolha voluntária e independente. Em vez disso, elas são sempre determinadas por causas internas e externas, ainda que muitas vezes não estejamos conscientes dessas causas. A crença no livre-arbítrio, então, seria uma ilusão — uma ficção criada pela nossa ignorância das forças e motivações que realmente nos movem.
Entretanto, Spinoza introduz uma ideia particular de liberdade que não se baseia no livre-arbítrio, mas no conhecimento. Para ele, a liberdade é alcançada quando o ser humano compreende as causas que determinam suas ações, reconhecendo-as como necessárias. Assim, o conhecimento das causas que afetam o Conatus nos aproxima da liberdade, não no sentido de poder escolher de maneira arbitrária, mas de agir de acordo com a nossa própria natureza de forma racional e consciente – esse percurso seria estabelecido por meio da construção reflexiva de uma narrativa cujos encadeamento causais seriam dispostos a partir de uma “lógica” e uma “racionalidade”.
O Inconsciente Freudiano: O Campo das Pulsões e o Desafio da Liberdade
O Inconsciente freudiano, por outro lado, introduz uma visão complexa da mente humana, em que grande parte dos impulsos e desejos que nos movem está fora do alcance da nossa consciência. Freud define o inconsciente como uma dimensão psíquica na qual (ou a partir da qual) se alojam conteúdos reprimidos, desejos, memórias e impulsos que, por serem socialmente ou moralmente inaceitáveis, são afastados da consciência. Esses elementos, porém, continuam a exercer influência sobre o comportamento e as emoções de maneira oculta.
O inconsciente freudiano é tal e qual o “terreno das pulsões”, organizado por Freud em duas grandes categorias: Eros, a pulsão de vida, que busca o prazer e a preservação da vida; e Tanatos, a pulsão de morte, que inclui tendências destrutivas e autodestrutivas. Essas pulsões estão em constante conflito com as demandas da realidade externa e as normas sociais, o que gera tensões internas, sintomas e atos falhos. Vale enfatizar (sem intenção de desenvolver aqui e agora) as aproximações possíveis entre de tal temática com aquela promovida por Nietzsche acerca das forças ativas e reativas. Enfim, sigamos.
No contexto freudiano, o inconsciente pode ser visto como um campo de determinismo psíquico. Assim como Spinoza vê o ser humano como governado por causas naturais, Freud entende que nossos desejos e ações são amplamente moldados por forças inconscientes. No entanto, o aspecto singular do inconsciente é que o mesmo se expressa por meio de mecanismos de recalcamento e retorno do reprimido, que frequentemente desafiam a integridade e a coerência do ego consciente.
Liberdade no Inconsciente Freudiano
À primeira vista, a existência do inconsciente parece desafiar a ideia de liberdade, uma vez que grande parte do nosso comportamento é moldado por desejos e pulsões de que não temos consciência. Como podemos ser livres se nossas ações são determinadas por forças das quais sequer temos conhecimento?
Freud, no entanto, não abandona a noção de liberdade, mas a reformula de maneira semelhante a Spinoza. Para Freud, a verdadeira liberdade consiste em trazer à luz o conteúdo do inconsciente, ou seja, tornar conscientes as forças que influenciam nosso comportamento. Esse processo de tomada de consciência acontece principalmente por meio da psicanálise, onde o sujeito é convidado a explorar suas memórias, seus sonhos, e seus sintomas, revelando os desejos reprimidos que estavam governando sua vida de maneira oculta.
O processo terapêutico tem como objetivo fortalecer o ego para que ele possa lidar de maneira mais equilibrada com as pulsões do inconsciente e as exigências do mundo externo. Assim, a liberdade em Freud não é a capacidade de agir independentemente das forças inconscientes, mas a capacidade de reconhecer e integrar essas forças, permitindo ao indivíduo uma maior autonomia sobre seus desejos e impulsos. Em outras palavras, a liberdade é um processo de autoconhecimento e de integração dos aspectos reprimidos da psique.
Aproximações entre Conatus e Inconsciente
Os conceitos de Conatus e inconsciente freudiano compartilham algumas semelhanças essenciais:
- Força Motivadora Interna: Ambos pressupõem uma força fundamental que move o ser humano. No Conatus, é o impulso para preservar e expandir a existência; no inconsciente, são as pulsões que buscam satisfação e expressão.
- Determinismo Psíquico: Tanto Spinoza quanto Freud rejeitam a noção tradicional de livre-arbítrio. Para Spinoza, o ser humano age conforme a necessidade natural, e suas ações são sempre determinadas. Para Freud, os desejos inconscientes governam grande parte do comportamento, tornando a liberdade um fenômeno condicionado.
- Busca por Autonomia através do Conhecimento: Ambos veem o conhecimento como um caminho para a liberdade. Em Spinoza, o conhecimento das causas que afetam o Conatus permite uma vida mais racional e autônoma. Em Freud, o conhecimento do inconsciente — revelado pela psicanálise — proporciona ao indivíduo maior controle sobre seus impulsos e maior integração psíquica.
Distanciamentos entre Conatus e Inconsciente
Apesar dessas aproximações, os dois conceitos divergem em aspectos importantes:
- Racionalidade vs. Irracionalidade: O Conatus, para Spinoza, é um movimento natural que pode ser guiado pela razão, levando o ser humano a um estado de compreensão e harmonia. O inconsciente freudiano, no entanto, é marcado pela irracionalidade das pulsões e pelo conflito constante entre desejos reprimidos e as exigências da realidade.
- Visão de Liberdade: Em Spinoza, a liberdade é alcançada ao compreender a necessidade das leis naturais que regem o comportamento humano. Em Freud, a liberdade é o resultado de um processo terapêutico em que o indivíduo se torna consciente dos conteúdos inconscientes que o movem, possibilitando uma melhor gestão desses impulsos.
- Conflito Psíquico: Enquanto Spinoza vê o Conatus como uma expressão harmoniosa do esforço de existir, Freud coloca o inconsciente no centro de um conflito interno, onde desejos reprimidos lutam para se expressar, gerando ansiedade, neuroses e outros sintomas.
Livre arbítrio na exata medida da ignorância
A experiência do livre-arbítrio, ou seja, a sensação de que temos controle completo sobre nossas escolhas, está diretamente ligada ao que desconhecemos sobre as causas ou condições que influenciam nossas decisões. Se formos “ignorantes” sobre os fatores externos (como influências sociais, biológicas ou psicológicas) ou internos (como nossas crenças inconscientes, desejos ou medos) que moldam nossas ações, é mais provável que acreditemos que estamos exercendo o livre-arbítrio de maneira plena. Quanto mais conhecimento e consciência tivermos sobre essas influências, mais perceberemos que nossas escolhas podem não ser tão livres quanto pensávamos, mas condicionadas por forças sobre as quais temos pouco ou nenhum controle.
Em outras palavras, o livre-arbítrio pode ser uma ilusão criada pela falta de conhecimento completo sobre as influências que determinam nossas ações. Quanto mais aprendemos sobre essas influências, menos “livre” nos sentimos para decidir, ao mesmo tempo mais conscientes das nossas escolhas; aí está uma certa margem de liberdade próprio aos humanos.
Enfim…
O Conatus de Spinoza e o Inconsciente de Freud representam duas abordagens sobre as forças que moldam a existência humana. Spinoza apresenta uma visão determinista e racional, em que a liberdade é encontrada no conhecimento das causas naturais. Freud, por sua vez, revela o inconsciente como um campo dinâmico e conflituoso, visto que a liberdade se conquista ao trazer à consciência as forças reprimidas que moldam o comportamento.
Em ambos os casos, a liberdade não é a capacidade de agir sem constrangimentos, mas a autonomia que surge do autoconhecimento. Em Spinoza, ao compreender as leis da natureza, nos alinhamos com nossa essência e alcançamos uma forma de liberdade racional. Em Freud, ao explorar os recônditos do inconsciente, podemos integrar aspectos ocultos de nossa psique e agir de maneira mais consciente e menos compulsiva. Dessa forma, tanto o Conatus quanto o inconsciente freudiano nos desafiam a repensar a ideia de liberdade humana, não como ausência de limites, mas como a capacidade de compreender e integrar as forças que nos movem, sejam elas racionais ou irracionais, conscientes ou inconscientes.
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